Imagine a cena: você está lendo uma bela melodia, talvez uma sonata clássica ou um tema de jazz sofisticado. Tudo flui perfeitamente até que, de repente, você se depara com ela – a “notinha”. Uma pequena nota que parece um apêndice estranho da nota principal. Um pânico sutil se instala, acompanhado por um turbilhão de dúvidas: “O que eu faço com isso? Toco rápido? Lento? Antes ou na batida? Isso tem valor de tempo?”.
Se essa situação lhe é familiar, você não está sozinho. A confusão entre os ornamentos Apogiatura e Acciaccatura é, de longe, uma das maiores fontes de erro rítmico e de estilo na execução de partituras. Tocar esses símbolos de forma incorreta não é um mero detalhe; pode arruinar completamente a intenção do compositor e fazer uma performance soar amadora.
Mas este é o dia em que essa dúvida acaba.
Este guia prático e definitivo vai dissecar visualmente cada um desses ornamentos, te dar regras cristalinas de execução e, o mais importante, fornecer exercícios específicos para flauta, saxofone e clarinete para que você possa dominá-los de vez.
Continue lendo para dominar estes ornamentos essenciais. E lembre-se: eles são ferramentas expressivas e um dos 3 pilares da musicalidade na partitura que abordamos em nosso guia completo sobre o tema.
A REGRA DE OURO: ENTENDENDO A DIFERENÇA VISUAL
A chave para nunca mais confundir os dois ornamentos está em um único e pequeno detalhe visual: um traço.
A Acciaccatura (a Rápida): O Traço que Muda Tudo
- O Símbolo: É representada por uma pequena nota (geralmente uma colcheia em miniatura) com um traço oblíquo cortando sua haste.
- A Palavra-Chave: Acciaccatura vem do verbo italiano acciaccare, que significa “esmagar”. Essa é a melhor forma de pensar nela: uma nota que é “esmagada” o mais rápido e levemente possível contra a nota principal que a sucede.
A Apogiatura (a Lenta): A Nota “Apoiada”
- O Símbolo: É representada por uma pequena nota, que também parece uma colcheia ou semicolcheia em miniatura, mas SEM o traço cortando a haste.
- A Palavra-Chave: Appoggiatura vem do verbo appoggiare, que significa “apoiar” ou “inclinar-se”. Pense nela como uma nota que se “apoia” elegantemente na nota principal, tomando seu tempo e criando uma deliciosa tensão antes da resolução.
Agora que você sabe a diferença visual, vamos mergulhar em como tocar cada uma.
DOMINANDO A ACCIACCATURA (A NOTA “ESMAGADA”)
A acciaccatura é o ornamento do brilho, da surpresa, do “piscar de olhos” musical.
A Regra Rítmica: O Mais Rápido Possível, ANTES da Batida
Aqui está a regra fundamental: a acciaccatura não tem valor rítmico próprio. Sua execução é tão rápida que é considerada ritmicamente insignificante. O mais importante é que ela é tocada ligeiramente ANTES do pulso principal. A nota principal, que vem logo depois, é a que cai perfeitamente na batida do metrônomo.
- Imagine a batida como uma porta se fechando. A acciaccatura é como um pequeno “clique” que acontece um milissegundo antes de a porta bater.
A Execução no Sopro: Leveza e Agilidade de Dedos
O segredo para uma boa acciaccatura é a agilidade e a economia de movimento. O fluxo de ar deve ser contínuo. Não pense em dois ataques de língua; pense em um único sopro onde os dedos executam um movimento rapidíssimo e preciso. O movimento deve ser leve como uma pena, um “flick” dos dedos.
- Para entender visualmente a execução, este vídeo demonstra claramente o conceito:
Exercício Prático #1 (Para Todos os Instrumentos de Sopro)
- Escolha uma escala maior (como Dó Maior) e um andamento lento (ex: 60 bpm).
- Toque a escala ascendentemente. Antes de cada nota da escala, adicione a nota diatônica imediatamente acima como uma acciaccatura. Por exemplo: antes de tocar Dó, toque um Ré rapidíssimo; antes de tocar Ré, um Mi rapidíssimo, e assim por diante.
- O seu objetivo é fazer com que a acciaccatura e a nota principal soem como uma única unidade, um gesto musical único, com a nota principal caindo exatamente com o clique do metrônomo. Grave-se para verificar.
DOMINANDO A APOGIATURA (A “NOTA DO SENTIMENTO”)
Se a acciaccatura é um brilho rápido, a apogiatura é um suspiro demorado. É um dos ornamentos mais expressivos e belos da música.
A Regra Rítmica: Roubando Metade do Valor, NA Batida
Esta é a diferença que muda tudo. Ao contrário da acciaccatura, a apogiatura é tocada exatamente NA batida. Ela “rouba” o tempo que pertenceria à nota principal.
- A Regra Geral: A apogiatura toma para si metade do valor da nota principal que a segue.
- Exemplo: Se uma apogiatura aparece antes de uma mínima (que vale 2 tempos), a apogiatura será tocada como uma semínima (valendo 1 tempo) e a nota principal também se torna uma semínima (valendo 1 tempo). O total continua sendo 2 tempos.
Visualmente:
- Como está escrito: (pequeno Lá) Sol (mínima)
- Como é executado: Lá (semínima) – Sol (semínima)
A Execução no Sopro: Pensando em Legato e Tensão
A apogiatura deve ser conectada em perfeito legato à sua nota de resolução. Não deve haver interrupção no sopro. A forma mais expressiva de tocá-la é dar um pouco mais de peso e ênfase à apogiatura (a nota de tensão) e tocar a nota principal com uma sensação de alívio e relaxamento (a resolução). É um pequeno drama musical em duas notas.
- Este excelente vídeo explica com clareza a interpretação rítmica da apogiatura:
Exercício Prático #2 (Foco em Melodia)
- Pegue a partitura de uma melodia extremamente simples e conhecida, como “Brilha, Brilha, Estrelinha”.
- Em um papel, reescreva a melodia, mas adicione uma apogiatura da nota acima antes das notas que caem no tempo forte de cada compasso.
- Toque a versão original. Em seguida, toque a sua versão com as apogiaturas, respeitando a regra de “roubar metade do tempo”.
- Sinta a enorme diferença na carga emocional. Onde antes havia simplicidade, agora há tensão, anseio e uma beleza melancólica.
EXERCÍCIOS ESPECÍFICOS PARA FLAUTA, SAXOFONE E CLARINETE
Cada instrumento tem seus desafios mecânicos. Aqui estão dicas para aplicar esses ornamentos no seu instrumento.
Para Flautistas: Foco na Leveza e Fluxo de Ar
A flauta é muito sensível a interrupções no ar. Para ornamentos limpos, mantenha o suporte do diafragma firme e o fluxo de ar constante. Pense nos seus dedos como “bailarinos” que se movem rapidamente sobre as chaves, sem perturbar a coluna de ar. Pratique sequências de acciaccaturas nas notas agudas para garantir que o som não “quebre” ou perca o brilho.
Para Saxofonistas: Foco na Precisão do Ataque
O saxofone pode facilmente soar “pesado” se os ornamentos forem tocados com um golpe de língua muito forte. Para acciaccaturas, pratique usando a sílaba “Dah” ou “Lah” em vez de “Tah”, buscando um ataque mais sutil. Em apogiaturas, foque em um legato perfeito, usando o mínimo de movimento da mandíbula para garantir que a afinação permaneça estável entre a nota de apoio e a principal.
Para Clarinetistas: Superando a “Quebra” de Registro
A maior dificuldade no clarinete é executar um ornamento que cruze a “ponte” do instrumento (a passagem entre o registro chalumeau e o registro clarino, por volta do Lá/Si/Dó centrais). Pratique especificamente mordentes e acciaccaturas nessas notas. Por exemplo, uma acciaccatura de Si para Lá. Isso exige uma coordenação motora finíssima e controle da pressão do ar para evitar o famoso “guincho”. Comece muito devagar, garantindo a transição limpa antes de aumentar a velocidade.
CONCLUSÃO: DEIXE DE TER MEDO DAS “NOTINHAS”
O mistério está resolvido. A partir de hoje, quando você vir uma pequena nota na partitura, sua mente irá instantaneamente procurar pelo traço.
- Com traço = ACCIACCATURA (Rápida e Antes da batida).
- Sem traço = APOGIATURA (Lenta e Na batida).
Encare estes ornamentos não como obstáculos técnicos a serem temidos, mas como um convite do compositor para que você adicione sua própria voz e emoção à música. São ferramentas expressivas que transformam uma simples melodia em uma performance cativante e cheia de personalidade.
Qual destes ornamentos você acha mais bonito de ouvir? A apogiatura expressiva ou a acciaccatura brilhante? Deixe sua opinião nos comentários abaixo!